O Fanciullo Ontopsicológico: A Inocência como Gênio Criador da Vida

Alexsandro dos Santos Machado

7/1/20259 min read

1) O Fanciullo: Entre Inocência e Ingenuidade

O termo fanciullo, palavra italiana que designa a criança em seu estado mais poético e simbólico, evoca mais do que apenas uma fase da vida; traz consigo uma visão existencial marcada por um tipo de pureza que transcende a cronologia da infância. O fanciullo é aquele ser que, mesmo em meio às contradições do mundo adulto, conserva no íntimo uma centelha de verdade interior — uma espécie de inocência que não é ignorância, mas escolha consciente de manter o coração limpo.

Para compreender plenamente o valor desse conceito, é necessário distinguir com cuidado os termos inocência e ingenuidade, frequentemente confundidos.

A inocência, no contexto do fanciullo, não se reduz à ausência de pecado ou ao desconhecimento do mal. Trata-se, antes, de uma atitude diante da vida: um olhar que se recusa a ser contaminado pelo cinismo, que escolhe a compaixão ao invés do cálculo, que busca ver beleza mesmo em meio à desilusão. A inocência, assim compreendida, é ativa. Ela supõe uma consciência desperta e, paradoxalmente, uma sabedoria que nasce da recusa a se endurecer. O fanciullo é inocente não porque desconhece o sofrimento, mas porque não permite que ele o destrua por dentro.

Já a ingenuidade é muitas vezes um estado passivo. Ela nasce da inexperiência, da falta de discernimento, da ausência de contato com as complexidades do mundo. O ingênuo acredita em tudo porque ainda não foi testado pela realidade. O fanciullo, por outro lado, acredita apesar da realidade. Ele não ignora as feridas do mundo; ele as sente mais profundamente do que ninguém, mas escolhe não deixar que elas envenenem sua capacidade de amar, de confiar, de sonhar.

Essa distinção é fundamental. Em um mundo cada vez mais cético e pragmático, a inocência é frequentemente confundida com tolice, e o olhar do fanciullo é relegado ao ridículo. No entanto, talvez seja justamente esse olhar o que mais falta em nossa época: a capacidade de manter a pureza do coração mesmo diante da corrupção, de preservar a ternura mesmo após a dor.

Não se trata aqui de nostalgia pela infância, mas da redescoberta de uma postura interior. Ser como um fanciullo é recuperar o frescor da alma, é resistir à amargura com esperança, é manter-se vulnerável sem ser frágil. É uma forma de coragem rara: a coragem de permanecer humano em um mundo que muitas vezes prefere a dureza.

Portanto, o fanciullo não é apenas a criança cronológica. É o adulto que escolhe não se tornar cínico. É o sábio que vê com olhos limpos. É o ser humano que, mesmo diante do abismo, guarda dentro de si uma flor intacta — não por não conhecer a escuridão, mas por ter decidido não deixá-la vencer.

2) O Fanciullo e a Obra de Arte da Vida: Inocência como Forma de Resistência Poética

Vivemos tempos marcados pela aceleração, pelo excesso de informação e pela substituição da experiência viva por sua reprodução técnica. Nesse contexto, a figura do fanciullo — a criança interior, o ser humano que mantém a pureza do coração — emerge como um símbolo de resistência poética. Mais do que um arquétipo da infância, o fanciullo encarna uma forma de viver a vida como obra de arte. Mas o que significa transformar a existência em arte? E como a inocência pode ser uma das maiores expressões desse gesto artístico?

Para abordar essa questão, é preciso recorrer à reflexão de Walter Benjamin, sobretudo à sua célebre análise em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Segundo Benjamin, a obra de arte tradicional possuía uma aura — uma qualidade única, irreprodutível, ligada à sua presença autêntica no tempo e no espaço. A aura não era apenas a raridade do objeto, mas a profundidade da experiência que ele proporcionava: o silêncio da contemplação, o tempo da escuta, a reverência do olhar. Com a reprodução técnica, essa aura começa a se perder. A arte se torna acessível, mas também, muitas vezes, superficial — destituída de singularidade, reduzida a imagem.

Aplicando essa metáfora à vida, podemos dizer que há uma forma de existência que conserva aura, e outra que a dissipa. O fanciullo é, nesse sentido, o artista da própria existência, aquele que recusa a vida reprodutível, a vida funcional, e escolhe viver com presença e autenticidade. Ele é capaz de ver a beleza nas pequenas coisas — no voo de um pássaro, no som da chuva, no gesto de um amigo — porque não perdeu a capacidade de experiência aurática. Sua inocência é, portanto, o solo fértil de onde brota uma vida vivida como obra de arte.

Essa inocência não deve ser confundida, como já distinguimos, com ingenuidade. O ingênuo vive fora do tempo do perigo; o fanciullo, ao contrário, conhece o risco, a dor, o desencanto — mas escolhe não entregar o olhar ao desespero. Ele preserva a aura da vida onde tudo parece ter se tornado descartável, utilitário, funcional. Ele contempla onde o mundo exige pressa. Ele sente onde o mundo quer eficiência. Ele desacelera para ver mais fundo.

Benjamin também nos lembra de que a verdadeira experiência exige tempo, atenção, e uma certa disposição ao assombro — justamente o que a sociedade moderna mais quer nos tirar. O fanciullo resiste a isso ao se manter sensível, disponível ao espanto. Sua inocência não o impede de sofrer, mas o impede de se tornar insensível. E isso é radicalmente artístico.

Assim como um artista não copia a realidade, mas a recria a partir de seu olhar, o fanciullo também recria o mundo ao viver com um coração que ainda acredita. Seu modo de ser é criativo. Ele não vive segundo os moldes impostos, mas segundo uma ética da delicadeza. E isso, por si só, é uma forma de arte.

Sob essa ótica, toda vida pode ser uma obra de arte — não no sentido estético superficial, mas no sentido profundo de ser única, autêntica, irrepetível. Uma vida com aura. Uma vida que, ao fim, se possa dizer: “foi vivida com verdade”.

Viver com o coração de um fanciullo é, pois, um ato estético e ético ao mesmo tempo. Estético, porque transforma o cotidiano em poesia. Ético, porque escolhe a bondade quando seria mais fácil a indiferença. Inocência, aqui, não é ausência de culpa — é a recusa de se deixar endurecer. É o cultivo de uma pureza ativa, luminosa, quase revolucionária.

Nietzsche, em Assim Falava Zaratustra, descreve as três metamorfoses do espírito:

camelo, leão e criança. A criança é o último estágio — aquele que cria, que dança, que diz sim à vida. O fanciullo é essa criança nietzschiana: alguém que passou pelo peso do mundo, enfrentou os leões do cinismo, mas decidiu voltar ao começo — não como quem retorna por ignorância, mas como quem retorna por amor.

E talvez, no fundo, seja esse o grande chamado da arte e da vida: reaprender a ver com olhos de fanciullo, reaprender a viver com aura, reaprender a habitar o mundo com espanto e ternura. Quando isso acontece, mesmo os dias comuns se tornam cheios de sentido. E mesmo em meio ao caos, algo dentro de nós permanece inviolado — como uma obra-prima que ninguém pode destruir.

3) O Fanciullo Ontopsicológico: A Inocência como Gênio Criador da Vida

A vida como obra de arte, já o vimos, exige autenticidade, presença e capacidade de manter a pureza do olhar mesmo diante da dureza do mundo. O fanciullo, símbolo dessa inocência ativa, foi apresentado até aqui como alguém que conserva a aura da existência, como em Walter Benjamin, e como aquele que, tal qual o artista, recria o mundo a partir de dentro.

Mas há um nível ainda mais profundo a ser explorado: o fanciullo como inteligência originária do ser humano — não apenas um estado de alma, mas o centro de onde brotam todas as verdadeiras potências do indivíduo. É nesse ponto que a Ontopsicologia oferece uma contribuição decisiva.

3.1)O Fanciullo como Núcleo da Consciência Autêntica

Na Ontopsicologia, o fanciullo é mais do que um arquétipo poético. Ele é o centro sígnico ontológico — o ponto onde o ser se reconhece como ele mesmo, antes das interferências culturais, ideológicas ou psicológicas. É o eu autêntico, em sua expressão mais limpa e criadora. Antonio Meneghetti reconhece que esse núcleo, mesmo sendo aparentemente “infantil” ou “inocente”, é na verdade o ponto mais inteligente, intuitivo e poderoso do ser humano.

Essa criança interior não é fraca — ela é o gênio originário. Sua força não vem da reação, mas da criação. Sua inteligência não é aprendida nos livros, mas é anterior a todo saber formal, e é justamente ela que torna possível a verdadeira ciência, arte, economia ou filosofia.

Assim, o fanciullo ontopsicológico não é apenas o que preserva o coração puro: é o que vê direto no real. Sua visão não é simbólica nem imaginária, mas fenomênica, isto é, ele percebe a essência das coisas, sem os filtros da alienação social ou do inconsciente desviador.

3.2) O Poder Gigante da Inocência Lúcida

Por essa razão, a Ontopsicologia afirma que o fanciullo é capaz de ações gigantes. Isso parece, à primeira vista, contraditório: como pode a inocência mover grandes feitos? A resposta é clara quando compreendemos que a inocência aqui não significa ignorância, mas sim pureza de intenção unida à clareza de percepção. O fanciullo é aquele que não se deixou dividir internamente. Ele age em unidade consigo mesmo. E por isso, é eficaz.

Onde o homem dividido hesita, o fanciullo realiza.

Onde o ego analisa, o fanciullo intui.

Onde a cultura sufoca, o fanciullo respira.

É por isso que, segundo a Ontopsicologia, o caminho do verdadeiro crescimento não está em se afastar dessa origem, mas em retornar conscientemente a ela. A maturidade plena não é a negação da infância interior, mas sua expressão com ferramentas adultas. O cientista genial, o artista criador, o filósofo visionário e o líder ético são, no fundo, adultos que permaneceram fanciulli — capazes de manter viva a luz primeira do ser.

3.3) A Vida como Ciência e Arte ao Mesmo Tempo

A Ontopsicologia também dissolve a antiga dicotomia entre arte e ciência. Na perspectiva do fanciullo, a vida é uma só: científica e poética, racional e intuitiva, objetiva e sensível. Toda ciência autêntica nasce da pergunta viva, do desejo genuíno de saber — e essa pergunta é sempre a do fanciullo: “por quê?”. Da mesma forma, toda arte verdadeira nasce de uma fidelidade ao que se sente no íntimo — e esse sentir também é do fanciullo, que não foi ainda colonizado pelas convenções.

Por isso, viver como fanciullo é viver de forma integrada, onde pensamento, emoção, intuição e ação não estão em conflito, mas em ressonância criadora. Trata-se de viver a própria biografia como obra de arte, não apenas bela, mas inteligente, eficaz e real. 3.4) O Fanciullo como Ética Ontológica

Finalmente, é importante notar que, na Ontopsicologia, o fanciullo não é apenas o centro da inteligência, mas também da ética verdadeira. Porque ele percebe o real sem máscaras, ele age de modo justo — não por imposição externa, mas por coerência com seu ser. Essa ética não depende de normas, mas de fidelidade ao sentido interno da própria existência.

É por isso que a inocência do fanciullo pode ser também a maior força política, econômica e cultural de uma sociedade. Uma humanidade que se reconecta com seu centro originário deixa de ser manipulável, e começa a agir de forma lúcida, justa e criadora.

A verdadeira revolução não é ideológica — é ontológica.

O Fanciullo como Fundamento do Homem Integral

Retomando todas as dimensões aqui apresentadas, podemos dizer que o fanciullo não é um símbolo de fragilidade, mas o fundamento do homem integral. Em Walter

Benjamin, vimos que ele é o guardião da aura, da experiência sensível e única. Na Ontopsicologia, compreendemos que ele é o gênio ontológico, capaz de ações gigantes, fonte da verdadeira ciência, arte e ética.

Viver como fanciullo é, portanto, mais do que um ideal espiritual ou estético — é o retorno ao ponto mais lúcido e potente da existência. É transformar a vida em obra-prima, com a inocência como guia e a ação como realização. Porque só aquele que preserva o coração puro pode criar um mundo novo.

*Alexsandro dos Santos Machado - Psicólogo. Mestre e Doutor Em Educação. Atualmente é CEO da Empresa Aletheia (Uruguai), Mentor da ONG Comunidade Reinventando a Educação (CORE) e Assessor da OSCIP Instituto PalavrAções. Tem experiência na área de Educação, Tecnologias e Saúde, atuando principalmente nos seguintes temas: Narrativas autobiográficas, Pedagogias Emergentes, Saúde Coletiva e Inovação.