A Arte de Cuidar-se: Reflexões Sobre a Conversão
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A ideia de conversão parece ser algo caro à história do pensamento humano — e não apenas aí, mas também no modo como vivemos a experiência da conversão.
Pois bem, o que é, afinal, conversão? Que sentidos, entre tantos, podem ser apreendidos?
Para os cristãos, o domingo de Páscoa é tempo de celebrar a Ressurreição de Cristo e sua primeira aparição entre os discípulos. Há aí, nessa passagem bíblica e de fé, uma questão muito cara à tradição cristã: a conversão — que envolve entrega, morte e vida nova.




Diante de tudo isso, talvez possamos pensar que a conversão, em suas diversas formas, é menos um ponto de chegada e mais um modo de caminhar. Seja no silêncio interior do estoicismo antigo, seja na fé inquieta da experiência cristã, converter-se é sempre um convite a habitar-se com mais verdade, a viver com mais inteireza, a amar com mais liberdade.
A conversão tem, portanto, relação com mudança, com transformação, mas também com o cuidado e o saber viver. Não é algo exclusivo da tradição cristã, tampouco há uma interpretação única e fechada sobre o processo de conversão. De maneira brilhante, por exemplo, Michel Foucault, na obra A Hermenêutica do Sujeito (organizada a partir das transcrições de suas aulas no Collège de France, em Paris, entre 1981 e 1982), apresenta inúmeras passagens nas quais discute, entre outras temáticas, justamente o processo de conversão desde os gregos antigos até a era cristã.
*Marcelo Silva de Souza Ribeiro - Psicólogo. Pós-Doutor em Educação. Professor na Universidade Federal Vale do São Francisco. Co-fundador da Educuidar.
Para os antigos — mais especificamente para os romanos, tomando como referência essa obra de Foucault —, a conversão (aqui cito Marco Aurélio, mencionado por Foucault) seria um voltar-se para si, uma espécie de reconexão, um não se deixar perder pelas demandas externas. Penso que isso corresponderia, mais ou menos, ao que vivemos hoje ao nos deixarmos levar pelos apelos do consumo, pelas referências externas que internalizamos, pelas comparações que nos dominam.
A conversão, nesse caso, seria romper com tudo isso e assumir a si mesmo como referência para saber como se posicionar no mundo. A arte do cuidado, que reside na conversão, seria não se perder no mundo externo, mas cultivar a autorreferência, a segurança interior, o amor-próprio, a autoestima. Obviamente, isso está muito longe de uma atitude egoísta — bem ao contrário: é justamente por voltar-se a si que o sujeito pode ser quem é, estando mais inteiro e melhor com o outro.
Na conversão cristã, a experiência passa primeiro por uma entrega a Cristo e à sua mensagem. Há, portanto, o elemento da fé. Ao mesmo tempo, há a experiência da morte, no sentido da renúncia, que se dá de maneira inexorável com a entrega e, por conseguinte, com a vida nova — uma vida transformada, benfazeja, que surge. Essa conversão, que é uma experiência de mistério — pois sempre esbarra nos limites da explicação e acena muito mais para a própria tragédia do processo — pode se aproximar, a meu ver, de outras possibilidades de conversão.
Contudo, não quero dizer com isso que as interpretações acerca da conversão sejam idênticas, nem que tudo seja a mesma coisa. Acredito que as interpretações (aqui uso o termo no sentido dado pelo teatro) são diferentes, talvez muito mais pelo foco que recebem. Na interpretação cristã, há também algo de um voltar-se para si, mas um voltar-se para Cristo que habita em nós — no amor profundo que nos cria e nos une. Por outro lado, a conversão segundo os antigos (sejam gregos ou romanos) conduz a uma vida nova que vem ou é retomada justamente por esse retorno a si. Na conversão cristã, a pessoa torna-se referência para si mesma porque é abundante em amor — e, por isso, segura e autorreferenciada. Já na perspectiva dos antigos, esse voltar-se para si também não conduz ao egoísmo, mas justamente à possibilidade de estar verdadeiramente aberto ao outro.
Não se trata de escolher entre um modelo ou outro, mas de reconhecer que a vida, em sua complexidade, pede passagens constantes, rupturas sutis, reencontros profundos. E, no fundo, talvez toda conversão seja uma forma de relembrar quem somos — ou quem fomos chamados a ser. Um gesto de coragem que nos retira do automático e nos devolve à responsabilidade amorosa de viver com sentido.
Converter-se, portanto, é também um ato de esperança: a crença de que é possível recomeçar, mesmo em meio às ruínas; de que é possível florescer, mesmo após o deserto. É reconhecer que a vida nova não é uma promessa distante, mas uma possibilidade real — sempre que escolhemos voltar, com mais lucidez e mais amor, para aquilo que em nós é mais essencial.
Referência
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Salma Tannus Muchail e Márcio Alves da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2010.